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quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Karatê nas Olimpíadas


 

Caratê se equilibra entre a arte marcial e o esporte em sua estreia olímpica

Para se apresentar como uma modalidade moderna, tradicional disciplina foi forçada a se adaptar Ben Dooley

Hisako Ueno

TÓQUIO | THE NEW YORK TIMES

​Seria difícil encontrar uma pessoa mais qualificada para dirigir a equipe nacional de caratê do Japão do que Rika Usami.


Ela tem uma faixa preta de terceiro grau e conquistou um título mundial de caratê em 2012. É uma celebridade estabelecida do esporte, e vídeos de suas apresentações registram dezenas de milhões de execuções. Ela chegou a escrever uma dissertação sobre a arte do soco.


Mas, com o caratê fazendo sua estreia olímpica em Tóquio, a promoção repentina que ela recebeu em maio causou profundo choque no esporte de seu país natal. Diferentemente de seus predecessores, ela é jovem, mulher e está disposta a desafiar as convenções de uma disciplina que há quem considere demasiadamente tradicional.


“Fiquei chocada com a decisão”, disse Usami, 35, falando de sua casa no oeste do Japão. “Foi algo que ninguém havia nem considerado.”                                                                                                                                             A indicação dela, que surgiu depois que seu predecessor foi acusado de ferir uma atleta com uma espada de bambu durante um treino, cristalizou uma questão que já existe há décadas no Japão.


O caratê deve ser considerado uma arte marcial tradicional, ou seja, um instrumento para preparar o corpo e temperar o espírito? Ou um esporte competitivo moderno, um veículo para o desempenho de atletas de elite, com lugar nos Jogos Olímpicos atuais?


Para muitos conservadores no Japão, o caratê e outras artes marciais japonesas representam valores como o sacrifício pessoal e a deferência à autoridade. São valores que eles acreditam ser fundamentais para o caráter nacional e cruciais para que o país tenha ascendido das cinzas depois da Segunda Guerra Mundial.


Mas essa visão romantizada de um código guerreiro virtuoso –conhecido como “bushido”, ou “o caminho do guerreiro”– também tem um lado sombrio: trabalho excessivo, assédio e uma pressão intensa pela conformidade, que, em casos extremos, pode até levar à morte.


Para o caratê, surgido centenas de anos atrás em Okinawa e em outras ilhas ao sul do Japão, a busca por aceitação olímpica, que durou décadas, envolveu negociar um equilíbrio delicado entre preservar os aspectos positivos de sua tradição e atender as necessidades de um esporte moderno.


Isso tornou necessária a criação de novas regras, novos regimes de treinamento e novas maneiras de administrar o relacionamento entre atletas e treinadores, disse Hironobu Tsuchiya. Ele é professor de psicologia do esporte na Universidade de Saúde e Ciências do Esporte de Osaka e também consultor do Comitê Olímpico Japonês.


“O caratê é uma arte marcial ou um esporte? Cada uma dessas coisas tem objetivos diferentes”, disse. “O primeiro desses objetivos é cultivar a humanidade do atleta. Participar de competições é apenas um passo desse processo. Mas o esporte requer que a pessoa seja mais rápida, salte mais alto, seja mais forte. Há uma grande distância [entre essas coisas].”                                                                                                                                      Enquanto os praticantes de caratê de todo o planeta se preparam para os três dias de competição olímpica, que começam na quinta-feira (5), o debate sobre eliminar essa distância, ou mesmo sobre se eliminá-la deveria ser um objetivo, continua intenso.


Encontrar uma resposta talvez tenha se tornado ainda mais premente do que no passado. Em termos mundiais, o caratê vem enfrentando cada vez mais competição de outras artes marciais.


O kung-fu é mais vistoso. O krav magá, de Israel, é mais prático. O taekwondo e o judô são mais estabelecidos como esportes competitivos. E o jiu-jítsu, graças ao sucesso de competições de artes marciais mistas (MMA) como o UFC, é a preferência daqueles que buscam se profissionalizar.


Para que o caratê prospere nesse ambiente superlotado, é preciso que a modalidade apare suas arestas mais ásperas e se universalize, disse o mestre Kazuyoshi Ishii, que criou a série de torneios K-1 de caratê “full-contact”, no Japão, no começo dos anos 90, como forma de dar mais visibilidade ao esporte.


Nos últimos anos, à medida que a liga K-1 se via eclipsada pelo espetáculo mais bruto do UFC, a visão de Ishii para o esporte se voltou mais para a família e para o mundo dos negócios.


“A Visa não vai patrocinar um torneio em que as pessoas saiam com o rosto coberto de sangue”, afirmou, em entrevista recente. “Os pais não vão querer inscrever seus filhos para aulas de alguma coisa das quais eles saiam machucados.”


Ao longo dos séculos, os praticantes do caratê selecionaram técnicas por sua efetividade em combate. Mas movimentos escolhidos por sua letalidade máxima são pouco práticos para competições em torneios.


No passado, essa desconexão ajudou a bloquear múltiplas tentativas de incluir o caratê nas Olimpíadas. O esporte mal conseguiu inclusão mesmo nos Jogos do país em que ele foi inventado e só encontrou lugar no calendário no último minuto graças a intervenções de figuras políticas poderosas como o atual primeiro-ministro japonês, Yoshihide Suga, ex-carateca.                                                                                                                          O conflito entre a velha guarda e a jovem guarda do caratê explodiu em maio, quando uma das estrelas da equipe nacional do Japão, Ayumi Uekusa, acusou seu veterano treinador de assédio.


Ela declarou em comunicado que seu olho havia sido ferido em uma sessão de treino na qual o treinador usou uma espada de bambu para atacar os atletas e testar suas técnicas. O treinador continuou a usar a espada de bambu a despeito de pedidos repetidos para que parasse.


As acusações de Uekusa rapidamente se tornaram notícia, e forçaram a equipe nacional japonesa a demitir o treinador, Masao Kagawa. Ele declarou naquele momento que assumia “completa responsabilidade” por seus métodos de treino, mas que não tinha pretendido machucar qualquer pessoa.


O comitê organizador da Olimpíada já havia sofrido diversas acusações de misoginia, depois que seu presidente fez um comentário sexista que levou à sua renúncia forçada. Nesse contexto, a equipe japonesa de caratê decidiu apontar Usami como treinadora.


Sua escolha para um posto que sempre coube a homens taciturnos com mais de 50 anos de idade tinha por objetivo mostrar ao mundo que o caratê e o Japão estavam abraçando a diversidade, disse Toshihisa Nagura, secretário-geral da Federação Mundial de Caratê.


O interesse de Usami no esporte remonta à sua infância, quando ela se apaixonou por um programa de televisão sobre uma jovem que salva o mundo por meio das artes marciais.


Mas, em lugar de se dedicar ao combate, ela se tornou especialista em “kata” –sequências fixas de movimentos solo, parecidos com uma rotina de ginástica, e julgados com base na velocidade, força, técnica e força do praticante. O kata é uma das duas competições do caratê olímpico, em companhia do kumite, que envolve lutar contra um adversário.


Usami rapidamente chegou ao topo do esporte, vencendo torneios nacionais em nível escolar e universitário. No Campeonato Mundial de Caratê, em 2012 em Paris, ela conquistou uma medalha de ouro por uma sequência que combinava imobilidade absoluta a socos e chutes tão fortes e tão rápidos que seu uniforme estalava contra seu corpo, ecoando pelo ginásio. A audiência a aplaudiu de pé.


Ela deixou as competições logo depois e começou a estudar para seu mestrado em ciência do esporte. O foco de seu trabalho era desmistificar o caratê, explorando maneiras de quantificar técnicas que os instrutores tradicionais haviam envolvido em conceitos esotéricos e metafísicos como o “ki” –uma força vital abstrusa originária do taoísmo chinês.


Usami emprega análise de vídeos com ajuda de computadores para refinar suas técnicas e priorizou a saúde mental dos atletas, um conceito radical para uma disciplina cuja ideia de psicologia esportiva foi sempre a de gritar cada vez mais alto.


As mudanças foram efetivas, disse Toshihisa Nagura, da federação de caratê: “Ela foi capaz de ensinar aos atletas em seis meses ou um ano técnicas que no passado eles teriam demorado dez anos a aprender”.


Enquanto o caratê navega por essa mistura de novo e antigo, o processo de transformá-lo em esporte olímpico continua inacabado. Não haverá torneio de caratê nas Olimpíadas de Paris, embora a França, um país com metade da população japonesa, tenha três vezes mais praticantes.                                                                           Yuko Takahashi, antiga integrante da equipe nacional japonesa e administradora de um dojo de caratê em Tóquio, recebeu positivamente a promoção de Usami, mas questiona se o caratê será capaz de realizar mudanças significativas.


Depois de anos de frustração com as organizações que comandam o caratê no Japão, ela criou um grupo para promover uma visão mais diversificada do esporte, centrada nos estudantes. E descobriu, diz, que “é incrivelmente difícil mudar a organização, especialmente como mulher”.


Quando Usami fala sobre o futuro do esporte, ela argumenta que, exatamente como ocorre ao executar um kata, o elemento mais importante é o equilíbrio.


“É importante ver o caratê como esporte. E também como arte marcial”, ela disse. “É precisamente porque essas duas partes existem que o caratê é o caratê.”

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